O que a Sexta-Feira da Paixão ensina para a esquerda?

Graças à formação católica, ao longo da infância e juventude participei de peças teatrais e performances que representavam a Via Sacra, o trajeto percorrido por Jesus carregando a cruz até o Calvário. Já fui Anás, Caifás, Barrabás, José de Arimateia e, muitas vezes, fui “crianças anônimas”. 

Só não fui Jesus, pelo padrão eurocentrado na escolha do ator.

Hoje, apesar de não religioso, tenho certeza que esse doloroso percurso do Cristo, formado por condenação, quedas, encontros - com a mãe ou com pessoas solidárias, até o sepultamento, tem muito a nos ensinar.

Estou certo também de que a figura do Jesus histórico se aproxima do que se convenciou chamar de “esquerda”, em que pese reconhecer o anacronismo na tentativa de interligar a história de um homem do século I a um conceito surgido na Idade Moderna.

A ideia aqui, longe da lacração do twitter, é encontrar elementos para fortalecer nossa compreensão, enquanto militantes em um país cristão, na luta por uma religiosidade amorosa que se aglutine à percepção das opressões estruturais e das injustiças de nosso modo de produção.

*Quem assassinou Jesus?*

Quem o matou não foram os pobres, os pretos, os LGBTQIA+, as prostitutas, os deficientes, mas o Estado em conluio com lideranças religiosas, militares e traidores. O Estado representado por lideranças do Império Romano, como Pôncio Pilatos e Herodes Antipas.  A igreja, representada por Caifás e todo o Sinédrio - sacerdotes que incitaram a multidão a condená-lo e trocá-lo por Barrabás. Seus apóstolos Judas Iscariotis (que o trocou por 30 moedas de prata) e Pedro (que o negou por três vezes), além de soldados que conferiram a estrutura armada para o martírio. 

*De que Jesus foi acusado?*

Jesus foi acusado de blasfêmia e de subversão contra o Império Romano. A sexta-feira da Paixão é o dia da morte, mas é precedida por 33 anos de luta de um líder revolucionário que ensinou pelo exemplo e pela palavra. Alguns pontos importantes de sua personalidade:

1️⃣- *Jesus era antiacumulação*. Não há notícias de que ele tenha concentrado riquezas. Nunca é demais lembrar que, apesar das interpretações eufemizantes, Jesus disse com todas as palavras que seria muito difícil um rico entrar no reino dos céus, além de aconselhar: “vai, vende tudo que tens, dá aos pobres e me segue”.

2️⃣- *Jesus não era armamentista*! Ele nunca mandou ninguém adquirir armas de fogo. Pelo contrário, ensinava que oferecêssemos a outra face, porque era um mestre manso e humilde (Mt 11,29), que pregou a paz (Mt. 5,9). Quando previu “tempos difíceis” para enfrentar os poderosos, pediu que vendessem a capa e adquirissem uma espada (Lc 22,36-38), mas proibiu seu uso: “Guarda tua espada no seu lugar, pois todos que pegam a espada, pela espada perecerão” (Mt 26,52). 

3️⃣- *Jesus não era punitivista*! Perdoou o ladrão do dia da crucificação e disse que deveríamos perdoar a todes “até 70 vezes 7” (Mt, 18, 21-22). É triste ver uma esquerda punitivista, proibicionista e com desejos encarceradores. A discussão conservadora sobre o aborto e a política de drogas nos diz um pouco sobre isso.

4️⃣- *Jesus era “do povo dos direitos humanos*”. Além de se insurgir contra a exploração dos mais pobres, andava coladinho com mulheres, crianças, leprosos, ‘coxos’, prostitutas, presidiários (“estive preso e foste me visitar” Mt, 25,36) e cegos e outros desprezados pela cultura da época.

5️⃣- *Jesus tinha certeza de que, antes de exigir que as pessoas trabalhem, é preciso garantir que elas estejam alimentadas*. Ao ver seu povo faminto não os mandou trabalhar e não os julgou de acordo com uma meritocracia safada. Jesus simplesmente pediu que apresentassem o que tinham (sete pães e alguns peixes), os multiplicou e deu aos famintos. Jesus também não vendeu para os famintos. Jesus não disse “antes de dar o peixe é preciso ensinar a pescar”. Não que ele se opusesse a isso, por óbvio. Mas Jesus sabia muitos sequer têm condições de aprende a pescar ou a comprar um vara ou um barco!

6️⃣- *Jesus odeia a hipocrisia*! Ele não condenou um cobrador de impostos (publicano), mas condenou o fariseu por ser um líder religioso hipócrita que finge cumprir rígidos preceitos ostentando santidade.

7️⃣ - *Jesus não era contra a cobrança de impostos*. Para ele, “Dai a César o que é de César”

8️⃣- *Jesus nasceu e morreu perseguido politicamente*. Houve recenseamento quando nasceu para encontrá-lo, ele se mudou, foi migrante, refugiado, sem teto.

📌 *Hoje é Sexta-feira da Paixão e as figuras que participaram da Via Crucis ainda são bem presentes*. Vejam só:

- *Pôncio Pilatos*: lavou suas mãos e jogou para a plateia. Muitos são os irresponsáveis que também agem assim. Com medo da chamada opinião pública, preferem lavar suas mãos, ainda que o tema “espinhoso” diga respeito à continuidade vida de muita gente.

- *Simão Cirineu*: É o cara que ajudou Jesus a carregar a cruz. Colocou a mão na massa e seu coro em risco. Vários ensinamentos podem ser extraídos daí. 1) sabemos que há teóricos que esbravejam na escrita contra a agressão a grupos vulneráveis, mas que, quando se deparam com agressões reais não emitem um pio; 2) há entre nós, preguiçosos contumazes, seres que só se veem no mundo da “articulação”, da farra dos bastidores, que suam muito pouco para ver a transformação do real. Esses últimos, são incapazes de carregar um banco, levantar uma cadeira, quem dirá uma cruz. 

- *José de Arimateia*: era dono de uma frota de navios, senador e membro do Sinédrio. Era discípulo de Jesus, mas mantinha isso escondido. Durante a condenação, defendeu Jesus, depois titubeou com medo da aristocracia. No dia seguinte, se arrepende e consegue autorização para retirar o corpo de Jesus da Cruz (na época, era normal que ficassem expostos para serem comidos pelas feras). É o cara do Santo Sudário. Há muita gente de esquerda assim: rica, bem intencionada, que até ajuda, mas sempre uma ajuda calculada.

- *Judas Iscariotis*: esse não precisa nem comentar. Tá cheio de gente assim no “meio político”. Que sua ideologia não vale um punhado de moedas ou um cargo.

- *Pedro*: esse negou Jesus por três vezes. Da última vez, um galo cantou. Jesus já o havia alertado que isso aconteceria. Também há gente assim entre nós. Covardes com receio de apresentar e defender nosso horizonte de mundo. São liberais que se vestem de esquerda quando é conveniente. Ou o contrário. O importante é não correr risco.

- *Dimas*. Para quem não se sabe, Dimas é “O Bom Ladrão”. Prefiro a versão dos Racionais MC’s: Dimas é o primeiro vida loka da história, que se arrependeu no segundo tempo, foi salvo e perdoado. 

- *Verônica*: mulher piedosa que deu o véu para que Jesus limpasse o rosto. Corajosa e com iniciativa. Tem muita Verônica entre nós. Graças a Deus.

- *Maria*: Para mim, essa é a parte mais dolorosa. Os olhos de Jesus encontram os de sua mãe numa vastidão de sofrer e esperança. Certamente, a dor maior para a mãe é ver seu filho em condição de sofrimento e morte. Muitas são aquelas mães vítimas do mesmo Estado assassino e de lideranças hipócritas.

- *A cruz*: Jesus a carregou e agonizou nela após a crucificação por 6 horas.

Que nos lembremos que ele ainda é crucificado em cada indígena morto, LGBTQIA+ discriminado, jovem preto assassinado, mulher violentada, população de rua humilhada, presos torturados, sem terra ameaçados, mães sozinhas abandonadas, pessoas desempregadas que não comeram do “Pao Nosso de Cada Dia” da vida plena retirada pela governo Bolsonaro. 

Para encerrar, a gente deseja que essa sexta-feira seja santa, de luta e apaixonadamente Fora Bolsonaro!


Texto de *Fabrício Rosa*. Policial Rodoviário Federal. Doutorando em Direitos Humanos na UFG. Membro da Coordenação Nacional dos Policiais Antifascismo e da RENOSP-LGBTQIA+. 

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